May 10, 2006

Manuel de Sousa Sepúlveda

que Deus te perdoe Sepúlveda
o que foste fazer
Sepúlveda
abandonaste o teu filho bastardo
no mato
o mais fraco
da fome a morrer
que Dues te perdoe
deixou-se ficar tão pequeno
sem um consolo um afecto
tão pequeno
e sozinho
muito quieto

ajoelha-te ao menos Sepúlveda
perdeste o entendimento
Sepúlveda
aquele pranto é o teu filho
entre os fenos
comido pelas feras
gemendo gemendo
ajoelha-te ao menos
ficou para trás tão cansado
soluçando por ti tão baixinho
tão cansado
a tremer de frio
o teu menino
nas serranias
nos lamaçais
nas penedias
nos matagais
nos matagais

e a tua gente
de costas viradas
viradas as costas
de pura vergonha
vergonha pura pela tua nudez
nudez pela tua miséria e peçonha
peçonha e miséria
de gente espancada
espancada esta gente
despida e calada
não vendo em ti salvação
os incréus
entram pelos matos
buscam os céus
vão indiferentes
meio aluados
mais indigentes
transfigurados
encomendam-se aos santos
lavados em prantos
louvados
sejam louvados
louvados

levanta-te agora Sepúlveda
quem olha por Leonor
Sepúlveda
foi a tua mulher
pelos negros despida
pela força rasgada pela dor
levanta-te agora
e diante dela tão magoados
choram os teus dois filhos
mais tenros
tão magoados
e acabrunhados
dos assombramentos

o que foste pedir Sepúlveda
Leonor quer antes morrer
Sepúlveda
rogaste que se deixasse despir
e despida ela ao menos
pudesse viver
o que foste pedir
se de vergonha
ao ver-se tão desnuda
se cobriu toda
numa cova na areia
tão desnuda
que não mais se ergueu
da terra já derradeira
nas serranias
nos lamaçais
nas penedias
nos matagais
nos matagais

reza a tua oração Sepúlveda
por Leonor e por Deus
Sepúlveda
se nenhum caso fizeste
dos teus filhos deixados
agarrados à mãe que morreu
reza a tua oração
por aqueles matos tão adentro
sem chorar
nem dizer coisa alguma
tão adentro
partiste p’ra sempre
sozinho
Sepúlveda

Sepúlveda
Que Deus te perdoe


Fausto Bordalo Dias, Crónicas da Terra Ardente, 1994

6 comments:

margarete said...

ouch.

ND said...

este Homem é extraordinário a juntar palavras e a fazer delas um mundo todo. Uma pessoa até se sente toda encolhida, raios!

menina alice said...

Este poema é assustadoramente forte. Li-o quando comecei a ouvir este disco e só muito recentemente consegui regressar a ele.

Anonymous said...

leio tão pouco... e tudo o que leio gosto... tenho tanta pena de ser assim, devia ser educado... muito bom

Anonymous said...

necessario verificar:)

menina alice said...

Verificar?...