January 28, 2010

JD Salinger


Os factos são sempre óbvios demasiado tarde, mas a diferença mais singular entre a felicidade e a alegria é que a felicidade é sólida e a alegria é líquida.

A Fase Azul de Daumier-Smith, in Nove Contos

Uma daquelas coincidências que, de certo modo, me consola porque me deu a ilusão de proximidade é que, nos últimos dias, tenho pensado que, ao contrário da minha consciência de finitude e da quantidade imensa de livros que quero ler ultrapassar largamente aquela outra circunstância, tenho de regressar aos livros do Salinger. Não direi o The Cacher in the Rye, que foi o primeiro, e o que menos me tocou (talvez mercê de já o ter lido nos trintas), mas os outros três. Ainda ontem, quando colaborava com a higiene da minha gata, me questionei porque raio não hei-de ter-lhe chamado Franny, que era o que fazia mais sentido.

(...) e os meus átomos, de resto, estão organizados de modo a tornar-me constitucionalmente inclinado a crer que onde há fumo há normalmente geleia de morango e poucas vezes fogo (...)

in Carpinteiros Levantem Alto o Pau de Bandeira e Seymour (uma Introdução)

Obviamente, ontem, nem me passou pela cabeça que o JD Salinger podia estar à beira de morrer. Até porque nunca pensamos isso de quem admiramos sem condições e à distância de umas centenas de páginas.

Mas o pior de tudo é que não consigo entender, juro-te que não consigo, como és capaz de rezar a um Jesus que nem sequer compreendes.

(...) ..., mas. santo Deus, quem, excepto Jesus, sabia realmente o que se passava? Ninguém.

- Oxalá casasses - insistiu - Porque não o fazes?
(...)
- Gosto demasiado de andar de comboio. Depois de nos casarmos nunca mais podemos sentar-nos à janela.

in Franny and Zooey

Hoje, pouco antes das vinte, na SIC Notícias, ouvi a notícia que tinha morrido, aos 91 anos, proeza que não será credencial que muitos de nós possamos apresentar à entrada do after life. E tive de fazer algo que pensava que só iria começar a fazer daqui a uns 15 ou 20 anos, quando a senilidade me desse liberdades que agora não me permito: telefonei para a SIC e disse-lhes que os dois exemplos de obras que tinham dado para contextualizar literariamente o falecido autor não eram senão duas traduções do mesmo título, porque À Espera no Centeio e Uma Agulha no Palheiro são os dois The Catcher in the Rye. O senhor que me atendeu, muito profissional, tomou nota da minha observação, que duvido tenha tido efeito no Jornal das 8.

As citações que hoje reproduzi foram tiradas ao calhas dos sublinhados dos meus livros. Falta a minha preferida, que postei há praticamente quatro anos e que continua a dourar-me o privilégio de partilhar o planeta com algumas pessoas:

Se for consultar o psicanalista, confio em Deus que ele permita que se sente também ao nosso lado um dermatologista, pois sinto que tenho cicatrizes nas mãos por tocar em certas pessoas. Uma vez, no parque, quando Franny ainda andava no carrinho, pus-lhe a mão debaixo da cabeça e deixei-lha lá ficar muito tempo. Outra vez, na Rua Setenta e Dois, fiz a mesma coisa, no Lowe, com o Zooey, durante a passagem de um filme sonoro. Ele devia ter cinco ou seis anos e metera-se debaixo da cadeira para não ver uma cena que muito o afligia. Pus-lhe a mão em cima da cabeça. Certas cabeças, certas cores, certos contactos com a pele humana deixam-me cicatrizes para sempre. Outras coisas também. Charlotte, uma vez. Fugiu-me do estúdio e eu agarrei-lhe no vestido para a deter, para a conservar perto de mim. Era um vestido de algodão amarelo, de que eu gostava por ser demasiado comprido para ela. Ainda conservo uma marca amarelo-limão na palma da minha mão direita. Oh, meu Deus, se eu sou qualquer coisa a que se possa dar um nome clínico, sou um paranóico ao contrário! Suspeito que as pessoas se conjuram para me fazer feliz.

in Carpinteiros, Levantem alto o Pau de Fileira

3 comments:

Ana Cristina Leonardo said...

somos duas a adorar o salinger e a preferir outras coisas ao Uma Agulha no Palheiro. Quanto à asneira da SIC, suponho que coisas similares (além de outras) o tenham conduzido ao "retiro". Um abraço em memória do salinger

menina alice said...

Abraço, Ana Cristina. Eu fiquei tão incrédula que fui confirmar se não era engano meu. Não era, claro. É que, para encher chouriços também é preciso ter arte. Não que seja importante, a maior parte das pessoas nem ligou, mas foi idiota demais para não reagir.

© Maria Manuel said...

gostei das passagens que escolheste para "postar" aqui, dá vontade de ir reler os livros ;)

andam agora as editoras, dizem, atrás dos inéditos que, segundo consta, ele terá escrito durante toda a vida e nunca publicado.