January 25, 2010

a prova dos 9

Se há sensação que gosto no Porto é a de me perder. E perder não é ir à procura de pechinchas ou de fazer de conta que não sei onde estou. Perder-me no Porto é realmente não saber onde estou a maior parte das vezes. Esse perder tem uma de duas dimensões: numa delas até conheço o lugar onde estou, mas não faço a mínima ideia de como se vai de A para B, e outra - felizmente cada vez menos comum -, é nem imaginar que raio de sítio é aquele, o muito britânico not having the slightest clue. Não reste dúvida que este meu talento para me desorientar no Porto tem muito a ver com as pessoas do Porto andarem sempre a dar grandes voltas para irem a algum sítio, só para diminuirem a circunstância incontornável de o Porto ser mais pequeno que parte dos subúrbios de Lisboa (ou até, diga-se em abono da verdade, dos seus próprios subúrbios). Feito este esclarecimento, tenho de admitir que é uma delícia ver os gajos do Porto à procura de um restaurante ou de uma loja, apalpando e agarrados ao GPS, como se ali estivessem pela primeira vez.

Foi assim no Sábado. Depois de uma tentativa frustrada para ir à loja do senhor simpático que vende capas plásticas para os vinis (só abre durante a semana...), fomos dar um beijinho à Tia Suzy (que se chama tudo menos algo que se possa diminuir para Suzy) e ela, simpática e orgulhosa da sua cidade, tirou-nos da ideia o destino marítimo para o almoço e fez-nos procurar um graal típico, a Adega do Olho. Explicou-nos onde não era e deu uma ideia aproximada de onde seria. Alertou para que a indicação na porta do restaurante dizia "Adega do" e depois tinha mesmo um olho desenhado. Andámos para cima, andámos para baixo. Perguntámos. Parámos a ver se estávamos a ver mal. Voltámos ao início. Perguntámos outra vez e só passadas algumas voltas encontrámos o recanto mágico onde se escondia o restaurante do Sr. Sousa.

Está bom de ver que, àquela hora, a hora do almoço, não havia lugar para almoçar. Se esperássemos uns 20 ou 25 minutos... Que sim, que esperávamos. A sorte e a moderada incapacidade do anfitrião para prever o futuro fizeram-nos entrar quase de seguida e, minutos depois, estávamos mergulhados numas tripas (aqui o plural é mesmo eufemismo porque me recuso a comer partes de dentro de animais, sobretudo se tiverem a ver com o cocó ou xixi) e nuns suculentos filetes de pescada, ambos acompanhados por um arroz igual ao que a minha Avó Dade fazia num tacho milagroso, já com as pegas todas beiçadas e escuros do lume do fogão.

As rabanadas da sobremesa eram diferentes de todas as que já experimentei, feitas em carcaça e com o pão quase a ficar cremoso. Estavam umas décimas abaixo das rabanadas da Avó Dade, mas a diferença não permitiu um julgamento comparativo credível. São, definitivamente, a experimentar.

O Sr. Sousa ostenta um farfalhudo bigode. Farfalhudo ao ponto de nem permitir adivinhar a forma dos lábios, e é comerciante atarefado e pouco dado a conversas enquanto trabalha. Contudo, estando a casa mais aliviada de clientela, se o elogiarem o suficiente, dispõe-se a um convívio cordato e credor de mais mercês. Como se fosse a primeira vez, perguntou se podia fazer a conta na toalha de papel e amontuou com a esferográfica uns elegantes e enormes números de euro, a pedir espaço para emitir a sentença financeira do repasto.

Saímos do restaurante com promessas de regresso e a dar alvíssaras à Tia Suzy, que nos tinha (apenas) encaminhado para tão prazenteira surpresa. Trouxe a conta comigo e não foi só porque eramos cinco e pagámos tão pouco. O Sr. Sousa, quando me viu a sacar da máquina fotográfica, não disfarçou o orgulho e contou que até há uma senhora, que agora já quase não vai lá, mas que um dia até levou a câmara e esteve a filmá-lo a fazer a conta. Tudo isto enquanto nos ensinava como de faz a prova dos 9.

4 comments:

ícone indie said...

zé quitério: watch out!!! a menina alice não é para brincadeiras quando de crítica gastronómica se trata.

João Lisboa said...

Perco-me sempre no Porto. Em Lisboa também. Aliás, perco-me em todo o lado.

menina alice said...

Assim fosse, meu ícone. Era uma profissão bem gostosa.

Tu não te perdes em Lisboa, João. Seria quase paradoxal.

João Lisboa said...

"Tu não te perdes em Lisboa, João. Seria quase paradoxal"

Não é "quase paradoxal", é paradoxal mesmo. E perco-me, sim.