August 14, 2011

a cidade dos livros


Depois da grande crise dos anos 10 e 20, pouco sobrou do mundo de antes. As distâncias voltaram a estender-se e o metabolismo do tempo desacelerou. Não era como nas décadas de trás, porque o mundo deixara de adolescer: havia dados adquiridos e questões prévias que já não eram ponto de agenda. Ainda assim, era um planeta mais lento que quando o século assomou.

Em 2032, a Internet tinha desaparecido de repente, sem aviso prévio para cópias de segurança.

Muitos perderam chão e anos de estados de alma, viúvos de milhares de caracteres, abandonados por um número infindo de registos e segredos. Surpreenderam-se todos sem saber o que fazer, esquecidos que estavam dos selos, dos postais, das horas ao telefone, do cheiro dos livros.

Sobraram então os livros. E os jornais, as revistas, as cartas, as filas dos bancos, os bancos de jardim, a memória dos jardins. Sobraram as bibliotecas e os quiosques. Borges escreveu que sempre imaginara que o paraíso devia ser algum tipo de biblioteca.

Alheias de propósitos orientados, as pessoas que começavam a fazer o mundo voltar a mexer, punham-no a ler. Fundavam-se bibliotecas de todo o tipo: de autores, de títulos, de especialidades, de desconhecidos de sempre, de laureados do mundo de antes. E, como já não existiam aviões, porque não havia combustível que os fizesse voar, o povo, que antes achava que a democracia era poder fazer tudo em todo o lado, depressa aprendeu que o que estava escrito desde que se escrevia e registava, o faria conhecer o mundo todo.

Em 2042, escassos meses depois da publicação da Declaração Mundial da Educação para a Participação, as Bibliotecas de Primeiras Frases deram sinal das suas (longas) vidas. De início, em escondidas e reduzidas secções de autores. Em breve, autonomizando-se, ao passo do empenho e da obstinação dos amantes da arte da escrita, que investiam em espaços com mais e melhores frases, quase sempre oferecidas por quem as gerara, a um universo cheio de vontade de as ressuscitar em novos vestires.

“Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão.” 

“Sempre me lembro de ter ouvido o mar.”

“Alguém deve ter difamado Joseph K., pois que numa linda manhã foi preso sem ter cometido qualquer crime.”

”Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores.”

 “A porta da cela bateu atrás de Rubachov.”

Era uma vez um homem que vivia em Buenos Aires e estava muito contente porque era um homem são e trabalhador.

“Encontraria a Maga?”

E o senhor como se chama? Espere, tenho-o debaixo da língua.”

“A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi ,  subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas.”

Tantas frases que foram berço de novos romances e ensaios. Novos poemas.

A regra era singela e de tácito acordo: se o transvestir fosse belo, ficava o escrito como caso julgado e mais nenhum candidato lhe tomava as rédeas. Os autores originais, se fossem vivos e tivessem vontade, também votavam. Com o hábito que havia da sociedade global de antes, com o muscular saudável do participar, não havia projecto que não abrisse noticiários e ilustrasse páginas de jornais.

4 comments:

João Lisboa said...

Isto tem pinta. É TPC?

:-)

menina alice said...

Foi um TPC. O último. Bastante livre, com o tema do título. Suponho que existiu mais para a formadora perceber o nosso universo de leitura, como um "Ah, afinal!". Uma coisa até deliciosamente voyeurista. Achas mesmo que tem pinta? Eu acho que é muito naíf, mas tenho este lado muito idealista (que surpresa!) e não me apeteceu esconder.

João Lisboa said...

Tem pinta.

menina alice said...

:)***